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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Desejo: um vizinho indesejável - Artigo do Fr. Antonio José Mouzinho de Sousa

Seguramente muita gente já teve um vizinho a respeito do qual desejava que não existisse ou se viesse a existir, certamente preferiria que tal existência se desse em algum lugar bem distante. E tal ordem de fatos se dá porque normalmente esses vizinhos apresentam como que um reflexo de nossas próprias fraquezas, até porque não nos irritamos com pessoas que são coniventes conosco. Ora, quando algo nos incomoda mais que depressa tentamos livrar-nos dele. E se não o conseguimos, nós ou o ignoramos ou agimos para ele de forma indiferente.

Certamente, parece ter sido tratado assim desde muito tempo algo que é inerente ao ser humano, o desejo. O homem é um ser que deseja. O desejo parece mesmo ser a essência do homem, como dissera Espinosa, importante filósofo cuja discussão filosófica em parte girou em torno dos afetos humanos. Temos também outros grandes pensadores, passando por Aristóteles, na antiguidade, Hobbes e Nietzsche, entre outros, que apresentam uma compreensão do desejo como sendo “um apetite”, isto é, uma potência positiva de vida, e por isso primordialmente humano.

Por outro lado, a psicanálise freudiana também tratando acerca do desejo o faz numa outra ótica. Para Freud, o desejo é concebido mais como um pesar, como algo voltado para o passado. Noutras palavras, o desejo aparece como “falta”, como carência, como ausência, sendo-lhe, pois necessária algo que o preencha. Vale mencionar aqui a etimologia deste termo. Desejo vem de de-siderium, isto é, afastamento de deus, queda do céu e dos astros (sidera), desastre. E o sentido mais direto do verbo latino desiderare é justamente deixar de contemplar os astros. Isto nos esclarece bem o desejo, em conformidade com isso, se relaciona mais com a deficiência do que a potência.

Com efeito, o homem além de racional é também afeto, emoção. A afetividade é, pois, uma importante característica humana. E o desejo se insere nesta categoria. Ele revela entre outras coisas o vazio que, paradoxalmente, acompanha o homem. Ora, desejo requer um imediato objeto que o satisfaça, embora ele nunca seja totalmente satisfeito. Quanto mais o homem se utiliza de coisas e/ou objetos que supostamente “tapam” seu vazio, tanto mais este aumenta, porque nada o satisfaz, de modo que a tal busca é indefinida. Delineia-se assim que muito mais que material, o problema é existencial.

A título de exemplo podemos considerar este fato: a realidade do homem como fortemente orientado por seu desejo é facilmente percebida na utilização que o mercado capitalista faz dela. A propaganda, grande aliada do capitalismo, atinge justamente aquilo que é mais latente no homem de nossos dias, sua propensão a consumir infinitamente [o melhor carro, a melhor casa, notebooks ou celulares, dentre tantos outros objetos, de última geração e da mais avançada tecnologia] para preencher um vazio interior, cujo reflexo é esse desejo insaciável que apesar de incomodar, o homem não consegue mais ter nenhuma influência.

Contudo, o desejo, elemento imaterial e existencial, não é solucionável – se considerarmos essa possibilidade – com matéria ou consumo, pois são categorias diferentes. Quantas vezes tantas pessoas ao se sentirem angustiadas ou sem algo que dê sentido às suas existências não começam a comprar ininterruptamente e sem necessidade, o que não precisam, ou até o que não podem pagar? E mesmo fazendo isto o que sente depois é que aquela vontade foi insatisfeita que reclama sempre mais. E como que zumbis passa-se a levar uma vida baseada no “consumo, logo existo”. Sem saber o “para quê”, consome-se irrefletidamente. O desejo está lá, mas não pensa-se sobre ele, só o satisfaz. É aquele vizinho incômodo ao qual não se suporta, porém não se pode eliminá-lo, então apenas olha-se para ele e vira-se imediatamente o rosto para não lembrar de sua presença.


Maiores aprofundamentos: cf. DUMOULIÉ, Camille. O desejo. Trad: Epraim Ferreira Alves. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005.
Autor: Fr. Antonio José Mouzinho de Sousa, SAC - mouzinho2006@yahoo.com.br

3 comentários:

  1. Desejo como "afastá-se de Deus?". Mas quando o único desejo do homem é o buscar Deus? Oxalá se todos os homens almejasse desejar o Deus trino, único. Teologicamente o desejo entra nesse aspecto, não significando mais o afastá-se.

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  2. Querido Confrade, admiro muito suas idéias e sua responsabilidade, desejo a vc sempre buscar desvendar esses mistérios do homem, que tanto nos ajuda a viver melhor nossa humanidade e desta forma a nossa vocação.

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  3. Olha, agradeço as críticas. O desejo é algo complexo que nem a psicologia ou qualquer outra ciência que se intitule "humana" conseguirá explicá-lo em sua totalidade; é algo profundamente humano e misterioso. Não obstante isso, podemos ter algumas luzes nos utilizando das ferramentas conceituais dessas mesmas ciências. Não desistamos. É uma empreitada não muito fácil certamente, mas é válida toda tentativa de conhecer sempre mais dessa realidade humana.

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